Capivara Criminal 232h40

Morte de Vânia põe às claras quem são os verdadeiros outsiders 6c3r3k

Inquérito sobre mulher da periferia assassinada há quase 2 anos ficou praticamente parado e só andou após mudar de delegacia 362f66

Quando Vânia do Nascimento Golombieski, 39 anos, foi achada morta, de bruços sobre um colchão coberto de sangue, com um rasgo no pescoço, mais de dois anos atrás, seus vizinhos do bairro Taquaral Bosque, em Campo Grande, apontaram o suspeito rapidamente. Foi o “Frozen”, diziam, suscitando elementos plausíveis para a desconfiança.

Diego Costa dos Santos, nome de registro do suspeito dos moradores, de 26 anos, desapareceu na sequência de duas tentativas de linchamento. Ficou livre da polícia em relação a esse caso por dois anos, e foi indiciado apenas em junho de 2023, depois de o inquérito ser transferido de delegacia. Ele e outro homem, João Paulo Magalhães Ramos, 23 anos, foram identificados e indiciados como os matadores de Vânia. Agora, estão presos, aguardando andamento da ação penal.

Abaixo, a cena mostra um homem que, segundo a investigação, é Diego, na rua da casa de Vânia, na noite do assassinato.

Ainda neste texto, você vai entender porque o caso ficou sem avanço por  tanto tempo, mesmo com vários indícios na direção de culpados.

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, diz o enunciado do artigo mais bonito, e talvez um dos menos respeitados, da Constituição Federal.

Constituição Federal de 1988

No tocante à Vânia, ou “Paraguaia”, como era mais reconhecida, a história de vida, e de morte, coloca em xeque os conceitos essenciais da lei máxima brasileira. Em linguagem entendível a todos, a forma como essa mulher viveu os últimos anos, o jeito como morreu e o desenrolar da apuração do fato são o mais “puro suco” da máxima de que “todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”.

Todos os envolvidos na situação de violência são moradores de uma região da cidade onde impera a pobreza, a desassistência generalizada. São excluídos, marginais, “não-seres”, são outsiders.

Ao usar esse último termo, em inglês, a Capivara Criminal não se refere ao uso da expressão em voga nas últimas eleições para denominar quem nega ser político profissional, e sim recorre a um sociólogo alemão, Norbert Elias. Há 60 anos, Elias publicou “Os Estabelecidos e os Outsiders, sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade”, fruto de experiência de três anos feita por John L. Scotson, em uma cidadezinha da Inglaterra, de nome fictício Winston Parva.

Em síntese, a obra explora a divisão da sociedade, que coloca o grupo dos “Estabelecidos” – no caso quem já morava há mais tempo, vivia em locais melhores e seguia papéis já consolidados na comunidade – em oposição ao “Outsiders”, representados pelos forasteiros recém-chegados, trabalhadores chamados a atender a demanda da industrialização.

“Dê-se a um grupo uma reputação ruim e é provável que ele corresponda a essa expectativa”, sentencia Norbert Elias em um dos trechos da obra, até hoje estudada pelos teóricos da área, inclusive para tratar dos fenômenos de exclusão social e violência.

Para o sociólogo, no caso de Winston Parva, o setor mais severamente marginalizado do grupo de outsiders ainda conseguia revidar, mas “de maneira sub-reptícia”.

“Até que ponto se transforma em apatia paralisante a vergonha dos recém-chegados, produzida pela estigmatização inescapável de um grupo estabelecido, ou até que ponto ela se transforma em normas agressivas ou em anarquia são coisas que dependem da situação global”, pontua o sociólogo.

Gente com medo de gente 1a1y3u

“Os grupos humanos vivem na maioria das vezes com medo uns dos outros, e frequentemente sem conseguirem articular ou esclarecer as razões do seu medo. Eles se observam mutuamente, enquanto se tornam mais fracos ou mais fortes. Sempre que possível, tentam evitar que um grupo vizinho alcance um potencial maior do que o próprio!”, analisa outro trecho de “Os Estabelecidos e os Outsiders”.

No panorama campo-grandense, a comunidade onde viviam Vânia e seus matadores preenche sem dúvida essa condição de lugar de medo, e de ausência dos mais básicos direitos.

Sobra invisibilidade, até depois da morte.

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Área circulada em vermelho, do lado de mata, é onde Vânia vivia, em barraco de 12 metros quadrados. (Foto: Reprodução de processo)

A morte de Vânia aconteceu mais de oito anos depois de episódio que voltou os olhos curiosos da cidade para uma das franjas mais marginalizadas de Campo Grande. O Taquaral Bosque é vizinho ao Danúbio Azul, onde agiu, por anos, o serial killer Nando, só descoberto quando já tinha feito mais de uma dezena de vítimas, às quais matava e enterrava.

Em geral morriam meninos pobres, sem trabalho e sem estudo, consumidores de drogas de baixo custo e alto poder de adicção. Eram atraídos pelo matador em série com promessas de dinheiro em troca de favores sexuais. Eram outsiders no nível mais degradante que essa classificação pode ar.

Nem depois de desaparecidos, e já mortos, provocaram comoção.  

Um a um, os participantes e testemunhas do homicídio de Vânia Golombieski vivem em universo semelhante ao descortinado pela prisão de Nando.

O consumo de pasta base de cocaína é citado como algo rotineiro. Os pequenos furtos e outros ilícitos para manter a dependência, também.

Idas e voltas da prisão, igualmente. O o a equipamentos públicos de educação, lazer e saúde é deficitário.

A maioria sequer chegou a fazer o ensino médio.

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Vânia do Nascimento Golombieski, assassinada a facadas em abril de 2021. (Foto: Reprodução de processo)

Foi assim com Vânia. Ela não concluiu o ensino médio, conforme as informações obtidas em processo judicial. Sobrevivia como catadora de recicláveis, de bicos capinando quintais e limpando residências como diarista, quando aparecia serviço.

Do pouco que ganhava, boa parte ia para o sustento da dependência química. Morava em uma área pública invadida, em um arremedo de barraco, de 12 metros quadrados.

Na cena do crime que a vitimou, o panorama é de um lugar inservível para viver.

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Fotos anexadas a processo judicial mostram o lugar miserável onde Vânia sobrevivia.

O medo no coração de mãe 1s3r2r

No depoimento à Polícia Civil, tomado só neste ano, a mãe dela, de 58 anos, contou que em razão da situação de Vânia, convivia com o medo de uma notícia ruim chegar.

Nas palavras da mulher, não esperava ver a filha sucumbir ao uso de entorpecentes. “Ela começou aos 29 anos”. Já tinha quatro filhos.

A mãe revela no depoimento ter tentado convencer a filha a se tratar, sem êxito.

Emocionada, relembra que Vânia havia se inscrito num programa de habitação popular e, se conseguisse a casa, dizia pretender entregar a posse à mãe, com quem vivem os filhos.

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A mãe da vítima, com a imagem de uma santa na camiseta, no depoimento à polícia. (Foto: Reprodução de Processo)

Na fala na delegacia, a mãe usa uma camiseta com a imagem de uma Nossa Senhora. No dia da morte, Vânia também estava com a imagem da santa mais popular no Brasil, em uma medalhinha.

Histórico 7433f

  • Em 2016, Vânia já havia sido esfaqueada, na rua. Naquele episódio, não foi grave.
  • No ano de 2018, foi presa com maconha e cocaína. Estava entregando a um adolescente, conforme o boletim de ocorrência. À polícia, negou ser traficante, dizendo ser para consumo próprio. Diante da morte dela, o processo vai ser extinto.
  • Ela revelou que já havia sido detida anteriormente, por porte de droga para consumo próprio.

Todo mundo sabia 22452q

Nos dez depoimentos ouvidos pela Polícia Civil este ano, depois da mudança do inquérito de unidade policial, “Paraguaia” foi definida como uma pessoa querida no bairro.

Sua morte provocou revolta, a ponto de terem ocorrido duas tentativas de agressão a “Frozen”.

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Diego Costa dos Santos, que está preso pela morte de Vânia. (Foto: reprodução de processo)

Logo após o crime, era corrente a informação de que ele havia sido visto saindo do barraco onde Vânia sobrevivia em condições miseráveis na noite anterior ao crime, 20 de abril.

Horas antes, conforme as falas colhidas só este ano, estava de posse de quatro facas, três delas vendidas em uma boca de fumo. Nesse lugar, ainda conforme as vozes da comunidade, “Frozen” proferiu a frase “hoje ela não me escapa”.

O motivo do crime, pelas inferências de quem vivia perto de “Paraguaia”, eram desavenças relacionadas ao fato de “Frozen” ter esfaqueado o namorado de Vânia a ponto de deixá-lo sem poder andar. “Goiano”, apelido de Leandro de Sousa Alberto, de 39 anos, o parceiro, ficou paraplégico em razão da agressão sofrida duas semanas antes da morte da companheira.

Em duas situações anteriores, Vânia e Diego haviam chegado às vias de fato. Em uma delas, conforme as testemunhas, ele estava munido de uma faca e ameaçou a desafeta de morte.

No dia do assassinato, houve uma tentativa de linchamento de “Frozen”, que acabou se salvando e sumiu por uns dias. Em primeiro de maio de 2021, foi descoberto na casa da mulher com quem vivia. Novamente, revolta e aglomeração de pessoas na porta da casa.

A Polícia Militar chegou ser chamada diante do tumulto.  “Frozen” foi levado para a Delegacia de Polícia Civil e como não havia mandado de prisão, foi liberado.  Depois disso, sumiu de vez.

Quando indagado sobre a suspeita em relação ao crime, negou e jogou a responsabilidade para João Paulo Magalhães Ramos. Afirmou ter sido “convidado” por ele, dias antes, para ajudar a matar “Paraguaia”.

A ira de João Paulo tinha a ver com um desacerto na partilha de valores obtidos com a venda de bijuterias encontradas durante o trabalho com resíduos.

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João Paulo também está preso pela morte de “Paraguaia”. (Foto: reprodução de processo)

Para quem acompanha investigações policiais, ainda que seja com o tratamento romantizado da ficção, fica clara a existência, desde então, de hipótese a ser perseguida pela polícia.

Não foi bem assim. “Frozen” e o homem apontado por ele como autor do homicídio seguiram sua vida normalmente. Diego acabou preso em Rondônia, onde está. João Paulo continuou pelas ruas do Taquaral Bosque.

Nesse intervalo de tempo, o inquérito correu a os lerdos. Apenas uma testemunha foi ouvida, a companheira de Diego.

Apesar de a técnica policial indicar como caminho básico a conversa mais breve possível com gente próxima da vítima, para entender seus últimos os e seus relacionamentos, não foi feito esse trajeto logo de início.

Nenhum outro vizinho foi formalmente inquirido, sequer a mãe e a filha da vítima, que foi quem acionou a polícia no dia da morte de “Paraguaia.”

A primeira pessoa a encontrar a mulher morta, um amigo dela, da mesma forma ficou sem ser ouvido.

A cada sessenta dias, uma nova extensão do prazo para concluir o inquérito era pedida à promotoria e autorizada, mas avanço mesmo, nenhum.

No fim de 2022, sequer havia relatório da perícia no local de crime. A faca supostamente usada, de 30 centímetros, só foi mandada para o trabalho pericial meses depois. A tentativa de localizar um DNA na arma branca foi requerida depois do pedido da promotoria nesse sentido.

Em janeiro deste ano, foi solicitada a transferência do caso da 3ª Delegacia de Polícia Civil, no Bairro Carandá Bosque, para a DHPP (Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa), sob alegação de que a unidade especializada poderia ter mais eficácia. Em março, a unidade ou a atuar de fato na persecução dos responsáveis pelo homicídio.

Evolução das investigações 5z4k2g

Em um dos relatórios da primeira equipe responsável pelo caso, uma das alegações para o insucesso nos trabalhos foi a pandemia de covid-19, que teria impedido a intimação de testemunhas, para seguir orientações da chefia da Polícia Civil.

Num outro documento, o fato de ser um lugar escuro também foi indicado como impeditivo de avançar nas diligências. Pelo informado, não havia câmeras de segurança que pudessem ter filmado algo relevante.

Na verdade, havia.

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Depois de assumir o caso, a equipe da DHPP ouviu uma dezena de pessoas, entre parentes, amigos e vizinhos da vítima.

“Frozen” foi citado em todos os depoimentos. João Paulo foi lembrado, mas com menos recorrência.

Em suas declarações, as testemunhas, na maioria, citaram a existência de imagens mostrando “Frozen” nas proximidades do barraco de Vânia no dia da morte.

No fim das contas, foi a mãe dela quem ajudou a polícia a localizar a imagem. Se tivesse sido ouvida antes, a trajetória do inquérito poderia ser outra.

O vídeo está no início deste texto e mostra um homem de camisa branca andando apressadamente pela rua. São dois ângulos.

Todos esses elementos foram considerados para a conclusão da DHPP de que Diego e João Paulo agiram juntos para matar Vânia, por motivos diferentes.

“Os denunciados mataram a vítima impelidos por motivo torpe, pois ambos praticaram o crime por vingança, sendo que JOÃO PAULO MAGALHÃES RAMOS queria se vingar da desavença ocorrida em razão da discordância pelos materiais recicláveis e o denunciado DIEGO COSTA DOS SANTOS queria se vingar pelo fato de que a vítima o ofendia toda vez que o encontrava, em razão dele ter esfaqueado o convivente de Vania anteriormente”, afirma a denúncia da promotoria atuante junto à 2ª Vara do Tribunal do Júri.

Trecho da denúncia da promotoria pública

Os dois presos negam a autoria do crime, em seus depoimentos.

Além do crime contra Vânia do Nascimento Golombieski, foi aberto na DHPP inquérito para apurar a tentativa de homicídio contra “Goiano”, ocorrência que nem havia sido levada ao conhecimento das autoridades.

A coluna está sendo encerrada com essa informação propositadamente, pois ela sintetiza a condição de invisibilidade dessa população, seja para receber o benefício dos serviços públicos, seja para resguardar a segurança da comunidade, punindo quem fere a lei. Se alguém fica paraplégico numa situação de crime, e a polícia não fica sabendo, um sinal de alerta se acende, na companhia de pontos de interrogação.

Este conteúdo reflete, apenas, a opinião do colunista Capivara Criminal, e não configura o pensamento editorial do Primeira Página.

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