Reconhecimento via foto coloca em xeque pena por latrocínio de 20 anos atrás
TJMS já aceitou analisar pedido de revisão de sentença sobre crime de 2005
Transcorridas quase duas décadas, as conclusões sobre assalto com vítima ocorrido em Campo Grande, no ano de 2005, podem ter reviravolta judicial. É que o TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) está analisando pedido da anulação da sentença por latrocínio, a partir de provocação de um dos dois condenados, sob argumento principal de ilegalidade do reconhecimento pessoal feito pelas vítimas, por meio de fotos.

Tal prática para identificar criminosos tem sido alvo de batalhas jurídicas e derrubado prisões e sentenças, por ser considerada ineficiente e ível de erros capazes de levar para a cadeia gente inocente.
Apelidado de “Pintor”, Mário Rogério de Lima, de 51 anos, o sentenciado em questão, afirma estar nessa condição.
Na tese proposta pela defesa dele ao entrar com o pedido de revisão criminal, a acusação foi baseada em procedimento fora dos preceitos legais. Conforme descrito pelos advogados, as vítimas foram confrontadas apenas com fotografias estampadas em jornais e fotos apresentadas pelos policiais.
“O Art. 226 do P dispõe de forma completamente contrária ao que foi realizado pelo grupo policial na demonstração de fotografia de jornal e álbum de fotos”, diz a petição. Na sequência, o documento traz o texto legal do P (Código de Processo Penal).
Art. 226: Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
- I A pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
- II A pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
- III Se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida,a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
- IV Do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Outro regramento lembrado pelos defensores é a resolução 484 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), estabelecendo requisitos para o procedimento de confirmação da identidade de suspeitos.
Editada em 2022, a resolução foi fruto de um grupo de trabalho, cujo objetivo foi clarear e reforçar as regras já estabelecidas em lei. O texto cita que o reconhecimento de pessoas equivocado é uma das maiores causas de erro judiciário.
Em sua manifestação à Justiça, a defesa de Mário Rogério assegura estar tratando de um exemplo do que o CNJ considerou ao baixar a medida.
“Constata-se que nenhum dos requisitos foram observados, já que não houve descrição prévia dos suspeitos, nem advertência às testemunhas da possibilidade de não serem os autores do delito, tampouco foram ofertadas fotografias de outros suspeitos semelhantes, sendo um cenário muito propenso ao erro.”
Petição à Justiça
Ainda nas palavras dos representantes de “Pintor” no TJMS, não foi observada a determinação do inciso II do artigo 226 do P. “O revisionando não foi colocado ao lado de outras pessoas com características semelhantes, mas sim incluído em um álbum de fotos a partir da indicação policial!”

Na argumentação defensiva, além do reconhecimento pessoal ter ignorado o rito determinado em lei, ao invés de mostrar ao menos outros indivíduos semelhantes, exibiu-se somente as fotos dos acusados.
Para os advogados Caio César Pereira de Moura Kai e Keily da Silva Ferreira, procurou-se “tão somente reforçar a opinião policial sobre a autoria.”
O condenado em busca de anulação da sentença negou o crime desde o primeiro dia.
Disse em juízo estar pagando por um “mal amigo”, em referência a Rodrigo França Soares, o “Japinha”, o outro condenado pelo assalto. A polícia localizou o suposto comparsa na casa de Mário Rogério, à época.
Investigação demorou a começar
Neste ponto, a Capivara Criminal volta no tempo para ilustrar outro aspecto adicionante de complexidade ao caso.
Embora “Pintor” e “Japinha” tenham sido presos em fevereiro de 2005, por outro episódio violento, o caso do bairro Parati levou meses para começar a ser tratado pela Polícia Civil.
Consta dos autos comunicação do MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul) em setembro de 2005, indagando se estava havendo investigação de tentativa de homicídio no dia 4 de fevereiro, na qual um morador tinha ficado paraplégico.
Cópia de página de jornal de 17 de fevereiro de 2005 tem manchete sobre a prisão dos dois homens. Na reportagem, já é atribuído a eles o assalto sobre o qual trata esta edição da coluna.

Apesar disso, não foi localizado inquérito com o nome da vítima nas delegacias que poderiam estar cuidando do assunto, a 5ª Delegacia, na região da ocorrência, a Derf (Delegacia Especializada de Repressão a Roubos e Furtos) e o Garras (Delegacia Especializada de Repressão a Roubo a Banco, Assaltos e Sequestros).
Diante da descoberta de ilícito penal violento sem qualquer apuração, abriu-se inquérito no Garras, a unidade responsável pela captura da dupla sob suspeita pelo outro roubo.
A primeira ordem de serviço para levantamento de informações pela equipe policial é de 10 de dezembro de 2005.
Observado o calendário, levou 309 dias, ou 10 meses, para o início das diligências.

Deu-se nesse cenário de demora para a polícia trabalhar no caso a convocação das vítimas para apontar quem eram os ladrões. Se logo após o fato, em situação de estresse, já é difícil ser preciso, imagine tanto tempo depois.
O inquérito inicialmente tratou o boletim como tentativa de homicídio, depois ou a figurar como roubo majorado. Após a denúncia do MPMS à Justiça, a morte da vítima levou à transformação da acusação em latrocínio, um dos ilícitos penais mais graves do ordenamento jurídico brasileiro.
Confira a cronologia do processo:
Data do fato: 04/02/2005
Denúncia oferecida:18/07/2006
Denúncia recebida: 19/06/2007
Aditamento da denúncia: 08/10/2009
Sentença condenatória: 16/07/2020
Trânsito em julgado: 05/10/2021
Ao fim da instrução de primeiro grau, a sentença aplicada foi de 23 anos de reclusão. Foi dado o direito de responder em liberdade aos réus.
Em segundo grau, houve confirmação da punição. No STJ (Superior Tribunal de Justiça), novamente a decisão de primeiro grau prevaleceu.
“Japinha” tinha agens anteriores pelos meios policiais. “Pintor” ainda não.
Os dois também foram processados pelo outro latrocínio ocorrido na época e Mário Rogério de Lima foi inocentado.
“Japinha” está até hoje preso, no EPJFC (Estabelecimento Penal de Segurança Máxima Jair Ferreira de Carvalho). Lá, teve diagnóstico de esquizofrenia, e está cumprindo medida de segurança, espécie de internação.
Fuga de quase 2 décadas
Mário Rogério Lima ficou sumido desde 2008. Acabou capturado em maio do ano ado, no conjunto Rouxinóis, por equipe da DHPP (Delegacia Especializada de Repressão aos Homicídios e Proteção à Pessoa).
Cumpre pena no IPCG (Instituto Penal de Campo Grande). Em dezembro de 2023, contratou banca de advogados para apresentar a revisão criminal, pedindo declaração de inocência.
Dono da acusação à Justiça, o MPMS defendeu a manutenção da sentença e manifestou concordância com a forma como foi realizada a identificação dos réus, além de ressaltar a importância da palavra das vítimas.
“Urge salientar que em sede de crimes patrimoniais, os quais são geralmente praticados na clandestinidade, a palavra da vítima é importante relevância, mormente quando não há nada nos autos que demonstre que o ofendido tenha inventado tais fatos com a simples intenção de prejudicar o acusado”.
Manifestação do MPMS
Em julgamento na 1ª Seção Criminal do TJMS, os votos do relator e do revisor do processo, contrários ao pedido da defesa, foram vencidos.
“Em sessão ordinária da 1ª Seção Criminal, realizada em 26/06/2024 14:00:00, no julgamento do presente recurso, foi proferida a seguinte decisão: Por maioria, conheceram da revisional, nos termos do voto do 1º Vogal, vencidos o Relator e o Revisor. Adiada a conclusão do julgamento para a próxima sessão para análise do mérito.”
Decisão da Seção Criminal
Trocando em linguagem para leigos: ao “conhecer” o pedido, os desembargadores concordaram em analisar o caso. Eles poderiam decidir que nem isso cabia e encerrar a contenda, como o MPMS sugeriu em sua manifestação.
Agora, na próxima sessão de julgamento, será apreciado o mérito. Ou seja: se a condenação será ou não anulada ou ar por alguma modificação nos termos.
Responsável pelo voto vencedor, o desembargador Ruy Celso Florence fez publicação sobre o julgamento nas redes sociais. Ele divulgou parte de sua fala na sessão, opinando pela necessidade de reavaliação dos procedimentos para reconhecimento de suspeitos de crimes, em razão dos erros descobertos, muitas vezes anos depois.
O desembargador chega a dizer que, diante da evolução, notadamente a tecnológica, está se julgando “com o ado”, e repetindo injustiças.
Veja abaixo: