Em 30 anos de existência de curso, indígena é a 1ª a conseguir se formar em Direito na UFMS k56l

Em cinco anos de vida universitária, Priscila vivenciou dificuldades que são comuns a todos os estudantes de origem indígena 595325

De todos os compromissos do curso de Direito, as reuniões com o Grupo de Acadêmicos Indígenas, realizadas às sextas-feiras à tarde, talvez sejam as que Priscila Amorim mais tenha se dedicado ao longo dos cinco anos de graduação.

Acadêmica indígena da UFMS
Acadêmica indígena da UFMS. (Foto: Eduardo Nantes)

Diferente de quando está em sala de aula, lugar onde por muitas vezes teve de silenciar suas opiniões e a própria história, ali nos encontros semanais com estudantes de diferentes cursos e etnias indígenas ela ocupa o centro das discussões, ouve, é ouvida, resolve e compartilha seus conhecimentos com o grupo de, aproximadamente, 90 acadêmicos indígenas.

“Começamos a nos reunir por ser o local do programa de iniciativa público-privada que apoia estudantes indígenas, o Rede de Saberes, dentro da instituição, e principalmente porque quando estamos juntos nos fortalecemos, somos nós mesmos, nos sentimos em casa”, explica a líder, que veio da Terra Indígena Limão Verde, localizada a quase 200 quilômetros de Campo Grande. 

As pautas trazidas pela jovem de 23 anos são urgentes para quase todos os estudantes indígenas matriculados na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), como: o ao vale-transporte, documentação para conseguir auxílio permanência, participação nas assembleias estudantis, informações a respeito do vale-alimentação, aquisição de internet ou xerox das disciplinas, dentre outras.

Grupo de estudantes indígenas da UFMS
Reunião do Grupo de Acadêmicos Indígenas da UFMS, que tem Priscila como liderança. (Foto: Eduardo Nantes)

O espaço físico é tido como uma pausa nas dificuldades em permanecer na universidade, tanto para quem está chegando quanto aos que estão há mais tempo pelo campus da UFMS, em Campo Grande. 

“O que nos mantém é o esforço dos nossos familiares e aldeias, porque os auxílios previstos pelas legislações são incertos, estamos sempre na incerteza de como vamos pagar o aluguel, como vou comer nesta semana, será que amanhã vou conseguir ir ao estágio? ”, explica Iara Campos, acadêmica indígena do curso de enfermagem.

Iara Campos, acadêmica indígena do curso de Enfermagem
Acadêmica indígena do curso de Enfermagem, Iara Campos. (Foto: Eduardo Nantes)
Vídeo da acadêmica Iara.

Moradora de um município vizinho à Campo Grande, Marília Gabrielly Marcelino depende da ajuda de amigos para assistir às aulas do curso de Engenharia Ambiental. A prefeitura de Sidrolândia, localizada a 50 quilômetros da Capital, oferece transporte aos estudantes somente nos períodos da manhã e tarde. 

Marília Gabrielly, acadêmica indígena do curso de Engenharia Ambiental.
Acadêmica indígena do curso de Engenharia Ambiental, Marília Gabrielly. (Foto: Eduardo Nantes)

“Meu curso é vespertino e noturno, eu consigo chegar aqui, às onze horas da noite não tenho como voltar para casa. Já perdi provas e três semanas de aula neste semestre. Estou em risco de trancar o curso porque não tenho condições de morar aqui e nem pagar R$500 todo mês”, desabafa a indígena terena. 

(A acadêmica Marília)

Insegurança em números 386q6f

Os desafios citados pelas jovens estudantes, conforme Priscila, ocorrem desde o ingresso das primeiras turmas da Lei de Cotas e se agravaram a partir de 2018 com os cortes de bolsas realizados pelo Governo Federal. “A alegria de ver o nome na lista de aprovação tem sido breve para muitos de nós, que não têm condições de se manter fora da aldeia”, detalha a líder dos acadêmicos indígenas. 

A insuficiência dos benefícios que auxiliam a permanência dos acadêmicos indígenas é confirmada nos números disponibilizados pela Ouvidoria da UFMS, para a pauta desta série especial selecionada pelo 4° Edital de Jornalismo de educação, da Jeduca (Associação Brasileira de Jornalistas da Educação), em parceria com o Itaú Social, por meio da Lei de o à Informação (LAI). Dentre os auxílios mais importantes, pela continuidade e valor, estão: auxílio alimentação (R$250,00), moradia (R$400,00), permanência (R$400,00) e MEC Bolsa Permanência (R$900,00).   

Bolsas UFMS de 2013 à 2022
(Arte: Thayanne Moraes)

Em contraste ao ano de 2016, em que o MEC concedeu 75 bolsas permanência dentre as 94 pessoas indígenas matriculadas na UFMS, este ano nenhum indígena em todo estado Mato Grosso do Sul teve o ao benefício. No ano ado (2021), apenas 1 dos 86 acadêmicos indígenas conseguiu receber. 

A insegurança do grupo também é visualizada em números como do auxílio alimentação: Dos 94 universitários indígenas matriculados em 2016, 27 foram atendidos; já em 2021, 3; e em 2022, dos 102 matriculados, somente 2. 

Permanecer é desconstruir  3k4k4m

Primeira acadêmica indígena a conseguir se formar em Direito pela UFMS, curso fundado em 22 de dezembro de 1995, Priscila ingressou na graduação em 2018 pela Lei de Cotas com o apoio da família e da sua comunidade. 

Priscila Amorim, primeira indígena a conseguir se formar em Direito pela UFMS
Priscila Amorim. (Foto: Arquivo Pessoal)

“Sou fruto da Lei de Cotas e tenho orgulho de falar isso. Sem as cotas eu, provavelmente, não teria entrado no ensino superior, porque eu venho de uma formação em escola pública, indígena e da zona rural. Não tem como concorrer com estudantes de escolas particulares. A Lei de Cotas promove a isonomia ao prever a nossa entrada”, pontua. 

O ano em que ingressou é marcado por uma mudança significativa no o ao ensino superior pelos povos indígenas:  foi quando a UFMS ou a exigir o Rani (Registro istrativo de Nascimento Indígena) emitido pela Funai (Fundação Nacional do Índio), ou uma declaração da comunidade confirmando que o candidato indígena resida na aldeia para efetivar a matrícula em qualquer curso superior. 

“Nas edições anteriores, mesmo com a Lei de Cotas, o sistema era frágil porque exigia somente a autodeclaração e, com isso, foram registradas inúmeras fraudes. Isso mudou há poucos anos para nós, indígenas, e também para pessoas pretas, que aram a ter bancas específicas”, explica. 

A acadêmica também foi uma das primeiras mulheres autorizadas a sair da aldeia para estudar. Filha de um cacique, teve de lidar com a resistência da mãe para se tornar universitária na Capital. “Ela sempre me apoiou em tudo, aprendi a gostar de estudar com ela, que sempre leu para nós em casa. Mas, naturalmente, existia o medo por eu estar sozinha em uma cidade sem nenhum parente – da família ou aldeia. Após várias reuniões com nossa comunidade, minha mãe autorizou. Logo depois ela também voltou a estudar e está terminando enfermagem”, conta.

Ser uma indígena em um curso tão tradicional, como Direito, em uma instituição pública foi um choque cultural com altos e baixos. 

“Minha turma me recebeu muito bem, desde o começo os colegas foram respeitosos e vinham me perguntar como eu preferia que me chamasse, quais termos são racistas e me deixavam à vontade para esclarecer sem constrangimentos. Contudo, infelizmente, alguns profissionais já não souberam lidar com essa diversidade dentro da universidade e houve momentos tensos, de eu ter que ouvir que indígenas não têm capacidade civil, por exemplo. Um conceito superado com a revisão de 2002 do novo Código Civil, mas que ainda persiste por alguns juristas”, desabafa.

Mulher, indígena e acadêmica 55386g

As dificuldades vividas em diferentes circunstâncias não a impediram de explorar ao máximo o que a graduação lhe oferecia, como participar da recém-lançada Clínica Jurídica e acompanhar atendimentos na comunidade ribeirinha do o do Lontra, no Pantanal, quando conheceu o trabalho da Defensoria Pública da União (DPU) e se tornou estagiária de uma defensora.  

Priscila Amorim durante encontro com acadêmicos indígenas da UFMS
Priscila Amorim durante encontro com acadêmicos indígenas da UFMS. (Foto: Eduardo Nantes)

Pouco tempo depois, foi contemplada com uma bolsa de Iniciação Científica (PIBIC) voltada à pesquisa de povos indígenas e começou a viajar e conhecer outras aldeias de Mato Grosso do Sul. Ao chegar nesses locais como uma mulher, indígena e acadêmica, Priscila sentiu o quanto estar no ensino superior era algo relevante para ela, sua comunidade e também às outras etnias. 

“As crianças me recebem, seguram minha mão e dizem que eu tinha conseguido sair para estudar, e aí eu falo que elas também vão conseguir. É algo que elas ouvem das famílias delas, que uma indígena está na universidade. É uma questão de representatividade, estar lá não é somente uma conquista pessoal, mas para os povos indígenas”, diz. 

A jovem indígena estudante de Direito ficou conhecida entre as aldeias e ela está, por isso, constantemente, em eventos e encontros com jovens indígenas de todas as etnias para falar sobre a universidade, formas de o, quais dificuldades, possibilidades e como fazer dar certo.  

Covid, vacina e desinformação 2m1d1y

Priscila tomando vacina contra a Covid-19
Priscila foi a primeira servidora da Defensoria Pública de MS a ser imunizada contra a covid-19, em janeiro de 2021. (Foto: Arquivo pessoal)

A autoridade e respeito adquiridos pela universitária nas aldeias têm colaborado com o trabalho de esclarecimento da importância da vacinação contra a covid-19 entre os indígenas, um dos principais públicos impactados pelas fake news. 

“As mensagens de desinformação sobre as vacinas são produzidas sempre remetendo à dor, abandono e tragédias já vividas pelos povos indígenas e isso, infelizmente, colaborou e colabora, ainda, com a resistência em se vacinar”, ela comenta em um vídeo produzido para as redes sociais.

Assessora jurídica do Núcleo de Defesa dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial e Étnica da Defensoria Pública de MS, desde 2019, Priscila foi a primeira servidora a se vacinar, em janeiro de 2021. Priscila entrou na lista prioritária, na época, por frequentar assiduamente sua aldeia.

“Faço parte do conselho, participo das reuniões, das decisões e tenho direito ao voto. Quando a covid chegou nas aldeias Terenas foi uma tragédia. Em 48h morreram 8 indígenas. Sentimos muito pela perda dos nossos idosos, que são as pessoas que am os ensinamentos da nossa cultura. Vários não resistiram”, recorda a aldeã que participou da campanha de busca ativa de indígenas para a vacinação.  

Os próximos 10 anos  1c366b

As últimas semanas do curso de Direito encerram com as emoções da insegurança com a vida profissional, prazos do TCC, ansiedade para a colação de grau e organização para encerrar a liderança no Movimento Estudantil Indígena da UFMS. 

“É necessário que outros assumam essa responsabilidade e mantenham nossas atividades, programações e propostas. Dentre elas, esse espaço onde conseguimos nos auxiliar porque estamos entre parentes, como nos chamamos. Estarei por perto e disponível em outras funções”.

Os planos, segundo ela, é permanecer no trabalho de novas conquistas para os próximos 10 anos da Lei de Cotas. “Quero muito chegar em 2032 e ver um Vestibular Indígena implantado e consolidado, assim como a Casa do Estudante Indígena. São pautas essenciais para os povos indígenas do Mato Grosso do Sul”, finaliza a acadêmica. 

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