É preciso uma aldeia inteira para uma indígena cursar medicina 43s5u
Aos 20 anos, acadêmica de medicina da UEMS recebe apoio da comunidade Terena a não desistir do diploma, mesmo após se tornar mãe 5y273g
Para estar na sala de aula às 8h, Amanda precisa acordar entre 4h e 4h30. Um intervalo que lhe permite revisar algum conteúdo, organizar o almoço e lanche que deixou preparados na noite anterior e, de carona com um colega, percorrer 14 quilômetros até a UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), em Campo Grande, onde ela fica até às 18h.

A rotina puxada de quem vai dormir à 1h poderia ser justificada como um dia a dia típico de quem é universitário, mas ocupar uma cadeira em uma universidade pública para pessoas indígenas é enfrentar desafios ainda maiores se comparado a não indígenas.
E é por isso que para Amanda, “perder a hora”, “vou comer qualquer coisa na faculdade” ou “não vou hoje nessa aula, depois eu pego o conteúdo com o pessoal”, comportamentos típicos de quando nós, não indígenas, estamos na universidade, não são nem sequer cogitados por ela.
“Sou Amanda Caetano, indígena da etnia Terena e estou no primeiro semestre do curso de Medicina da UEMS. Eu ei em primeiro lugar no vestibular pelo programa de cotas”, ela se apresenta.
Dar conta de um curso universitário integral, se formar e retornar para sua comunidade como médica são suas metas e exigem muita disciplina.
“Está bem difícil. Além das aulas, temos de estudar e eu tenho apenas as madrugadas”, relata a acadêmica em entrevista à pauta desta série especial selecionada pelo 4° Edital de Jornalismo de educação, da Jeduca (Associação Brasileira de Jornalistas da Educação), em parceria com o Itaú Social.
Outro desafio, e segundo ela um dos mais exaustivos, é ter de desconstruir o tempo todo a imagem da diferença em um local tradicionalmente pensado e organizado para não indígenas.

“Ainda é comum as pessoas acharem que moramos em oca e que andamos com as ‘vergonhas de fora’, como descreveu Pero Vaz de Caminha, há mais de 1.500 anos. Nós somos diferentes, mas não de uma maneira ruim ou negativa. Essa visão selvagem que os não indígenas têm de nós nos limita a seres que devem ficar lá na aldeia e sem direito a participar dos espaços não indígenas”, afirma.
“Eu sempre quis medicina” 663i5q
Amanda nasceu na Aldeia Córrego Seco, uma comunidade de aproximadamente 150 famílias localizada no município de Aquidauana (MS), em 2001, poucos meses antes de uma das principais conquistas dos povos originários e indígenas no o ao ensino superior: a sanção da Lei nº. 2.589, de 26 de dezembro de 2002, que determinava a reserva de vagas aos vestibulandos indígenas na UEMS.

No Bloco do curso de Medicina da UEMS, Amanda exibe orgulhosa seu casaco do curso de Medicina.
Com o pai motorista de ambulância da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e a mãe agente de saúde comunitária da aldeia, o sonho de ser médica é compartilhado por toda família de Amanda.
“Na nossa comunidade os médicos são itinerantes, am só uma vez por semana, e eu me recordo de ir até o postinho conversar com eles, ver o que e como eles faziam o atendimento e, também, de querer ser médica quando eu era criança”, relembra.
Mas enfrentar o vestibular de medicina somente com os estudos que teve na aldeia não era suficiente; pagar por um cursinho preparatório, também não.
“Tenho imenso carinho pela escola da nossa aldeia, é de onde eu saí alfabetizada e incentivada a gostar de estudar. Contudo, é de conhecimento o quanto o ensino nas comunidades indígenas é sucateado e sofre com a falta de investimentos e apoio profissionalizante aos professores”, diz.
Na comunidade Córrego Seco, onde foi criada, a partir do 4º ano os estudantes precisam ir até a aldeia vizinha, a Limão Verde, para continuar os estudos. O deslocamento, segundo ela conta, sempre foi realizado por um ônibus velho que compromete a chegada até a escola.
“Aconteceu bastante na minha época e ainda acontece, infelizmente, dos alunos perderem aula quando chove, porque é muito barro e atola, ou por causa dos vários estragos do veículo. Até as escolas ruins dos não indígenas são melhores que as escolas das nossas aldeias”, relata.
Ao terminar o ensino fundamental, ela ou no Curso Técnico de Informática/Médio, do IFMS (Instituto Federal de Mato Grosso do Sul), pela Lei de Cotas. Com essa aprovação, os pais permitiram os estudos em Aquidauana.

“Eu tinha 16 anos, o IFMS é a melhor escola do município e aquela era a chance que eu tinha para conseguir ingressar em medicina, futuramente. Foram quatro anos de preparação, indo e voltando todos os dias, saindo 5h30 da aldeia e retornando à noite com meu pai de moto, alimentando o sonho de ser médica”, conta Amanda, uma das 506 pessoas indígenas matriculadas na UEMS em 2022.
Uma aldeia inteira 4v1k6i
O vestibular de medicina se aproximava e, com ele, uma das circunstâncias mais difíceis a ser enfrentada pela jovem tímida, magra e de olhos firmes: ela estava grávida.
Aos 19 anos e junto ao companheiro, também indígena, Amanda decide finalizar o ensino médio e permanecer na aldeia. “Estava feliz com a gestação, mas triste com aquele contexto. O primeiro sentimento era o de que pararia de estudar, pois é a realidade que vemos com frequência na aldeia, a de meninas engravidarem antes dos 20 anos e abandonarem os estudos. Isso me abalada”, reflete.
Entretanto, o casamento logo chegou ao fim e ela retornou à casa dos pais, onde recebeu todo o apoio para não desistir do curso de medicina.
“Quando as inscrições abriram, eu decidi fazer para ver meu desempenho, afinal, eu tinha me preparado por todos aqueles anos. Fiz a prova grávida, achei tudo difícil e saí chorando. Minha meta era a UFMS, mas lá tinha apenas uma vaga para medicina – somada às outras 2 reservadas ao Sisu e 1 a pessoas de baixa renda – e eu fiquei em segundo lugar. Já na UEMS, classifiquei na primeira colocação pela Lei de Cotas. Foi um susto, era algo inacreditável. Eu realmente achava que não aria”, recorda.
Iniciar o curso de medicina alguns meses depois exigiu dela um enorme sacrifício. “ar a semana em Campo Grande para estudar e todo sábado e domingo na aldeia, onde minha filha fica com meus pais. É uma dinâmica difícil para nós duas, ela tem quatro meses e eu faço de tudo para estar presente. O que me confortou ao assumir a vaga é o fato dessa decisão ter sido tomada em conjunto com nossa comunidade, em assembleia, que entende a minha formação em medicina como um bem maior e coletivo”, ela detalha.
A maternidade ou paternidade de acadêmicos foi uma das questões avaliadas pela V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES (Instituições Federais de Ensino Superior), realizada em 2018 e divulgada em 2019 pelo Fonaprace (Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis).
Do total de 424.128 entrevistas válidas, o levantamento destaca o quanto a cor ou etnia interfere no perfil dos alunos, ao observar o percentual de 46,2% de pessoas indígenas aldeadas com filhos. A quantidade é quase 6 vezes a proporção de estudantes brancos com filhos, que registrou a menor porcentagem, de 8,3%.
Vestibular não indígena 45651
Receber o apoio das lideranças da aldeia e de sua família tem sido determinante para que Amanda alcance o diploma mesmo caminhando na contramão da história da educação superior do país, que por muito tempo negou a diversidade e privilegiou pessoas não indígenas e oriundas das altas classes sociais.
O cansaço de ter de desconstruir rotineiramente o legado do colonialismo, citado anteriormente por ela, está em exemplos como a própria prova de vestibular que trouxe como tema da redação “Aspectos das culturas dos povos indígenas em MS”.
“Eu vibrei quando vi! Imagina, quem melhor que eu ou qualquer outro candidato indígena para falar sobre isso? E ainda tinha como texto motivador uma música dos Brô Mc’s, grupo de rap com artistas indígenas Guarani e Kaiowá que sou fã. Mas eu não consegui escrever do jeito que fui ensinada, com distanciamento de um assunto do qual faço parte, que fala da minha história, dos meus anteados, e criei meu próprio modelo de redação”, detalha.
Apesar de ter sido aprovada em primeiro lugar por cotas, o resultado da redação foi 700, uma nota considerada baixa no exame. Para Amanda, muitas das dificuldades enfrentadas poderiam ser minimizadas se as universidades públicas de Mato Grosso do Sul oferecessem o vestibular indígena.

“Isso daria mais esperança às comunidades. Nós já não nos vemos representados em lugar algum, nossas características, como olhos puxados e aparência, foram sendo apagadas. Provas específicas para nós, indígenas, seria como falar a nossa língua, que é a nossa cultura. Um convite que teria mais adesão dos indígenas, porque na aldeia a maioria já se sente derrotada, reprovada, fora da lista, sem nem mesmo nunca ter pisado aqui”, enfatiza a acadêmica.
Em 2021, conforme dados fornecidos pela UEMS, via LAI (Lei de o à Informação), dos 274 alunos matriculados e distribuídos em todos os semestres do curso de Medicina da UEMS, apenas 18 eram indígenas.
Procuramos as UEMS, UFMS, UFGD e IFMS para saber se existe a intenção de oferta de um processo seletivo específico para pessoas indígenas, considerando a expressiva população indígena do estado.
Em resposta, a UFGD pontuou que não há nenhum “projeto de criação de um vestibular exclusivo para indígena”. A negativa também foi recebida pelo IFMS, que respondeu a não “previsão de um edital voltado especificamente ao ingresso de estudantes indígenas em cursos de graduação”.
A UEMS não respondeu à questão, apenas reiterou que oferece 10% das vagas para indígenas nos processos seletivos tradicionais, e a UFMS não se manifestou até a data de publicação desta série especial.

Outra questão importante da oferta do vestibular indígena é que as instituições de ensino superior oportunizariam mais indígenas do próprio estado a ingressarem.
“De modo geral, vemos poucos indígenas de Mato Grosso do Sul na UEMS, UFMS e IFMS, e mais acadêmicos indígenas de outros estados. Na minha turma, por exemplo, entramos em quatro por cotas, eu e mais uma aluna somos de MS, os outros dois são de fora. A maior oferta de vagas e um vestibular indígena nos colocariam em uma posição de maior igualdade com todo o sistema”, explica.
Ao ser questionada se já pensa sobre a especialidade que pretende fazer, a acadêmica responde rápido. “Quero voltar para minha comunidade como pediatra, ser alguém em quem as crianças indígenas possam se espelhar, dizer, ‘nossa, ela morava na aldeia e conseguiu. Eu posso conseguir também’. Eu vejo elas brincando de serem ‘doutora’ e fico muito feliz. Quanto mais indígenas entram no ensino superior, mais a gente vê alguém como a gente lá”, reflete.

Ser indígena na universidade 703p3y
Ingressar no ensino superior é uma das muitas etapas a serem vencidas em um espaço tomado por desigualdades históricas.
Amanda começou os estudos um mês após o início das aulas e teve de interromper a amamentação porque, conforme informado pela UEMS à acadêmica, a licença-maternidade seria de apenas três meses. Mais que isso, ela teria de trancar a matrícula. “Foi horrível estudar sobre a importância da amamentação exclusiva com meus seios fartos de leite sem eu poder amamentar”, ela recorda emocionada.

Das vantagens da primeira graduação, segundo ela, estão conhecimentos que fazem a diferença na rotina universitária, como formatar documentos, produzir slides, montar uma apresentação e encaminhar um e-mail.
“Com minha agem pelo Instituto Federal me sinto preparada e em pé de igualdade com os demais colegas, porque é normal para todo mundo aqui ter esse tipo de habilidade digital, mas para nós, ainda não. E eu vejo meus colegas indígenas arem por várias dificuldades. Imagina sair de uma aldeia que mal tem internet e entrar em um curso onde a maioria dos professores envia atividades por email e se você não entregar o trabalho naquele determinado formato ou fazer fora dos padrões fica sem nota? ”, avalia Amanda.
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Mas o caminho desse aprendizado também foi difícil para ela, que ou boa parte do curso Técnico em Informática fazendo trabalhos acadêmicos pelo celular, com o limitado à internet via rádio da comunidade. O computador que hoje a estudante exibe com alegria é uma aquisição recente para cursar medicina e, segundo ela, está “parcelado a vida toda”.
Alcançar e permanecer 2c1049
Um recurso que auxilia a permanência da acadêmica no curso de Medicina é o programa Vale Universidade Indígena, criado em 2009 pelo Decreto nº 12.896, antigo Bolsa Universitária para Alunos Indígenas, implantando em 2005 por meio da UEMS.
Por receber o valor de R$750 mensais do programa, Amanda precisa oferecer como contrapartida aulas de monitoria aos colegas indígenas, todos os dias, nos horários sem aula. “Fico feliz em poder contribuir dividindo meus conhecimentos com outros acadêmicos indígenas que precisam de mais atenção em relação ao o e aprendizagem digital. Porém, infelizmente, o valor é baixo para eu suprir todas as minhas despesas, com aluguel, alimentação, água, luz e internet”, ressalta.

Ainda é apenas o primeiro semestre de medicina, Amanda já correu muito até aqui e ela sabe o porquê. Implantado em 2014, o curso de Medicina da Universidade Estadual de MS (UEMS) realizou o primeiro processo seletivo em 2015 e registrou o ingresso de 46 acadêmicos e acadêmicas, dos quais apenas 5 eram pessoas indígenas. Em 2020, dos 47 formandos da primeira turma, somente 3 representaram os povos indígenas.
Quando olha para trás, se emociona. “As cotas me proporcionaram estar em um curso junto com o filho de um juiz, algo que jamais seria possível sem as políticas de ações afirmativas. Sem a vaga garantida, eu não estaria aqui. E é por isso que preciso aproveitar essa chance e apoiar os outros indígenas, porque eu ainda sou um caso isolado. Aprendi com a minha aldeia que temos que correr hoje, para que os próximos possam andar amanhã”, finaliza a acadêmica indígena de medicina.