Talvez você não saiba, mas indígenas Terena de Mato Grosso do Sul participaram da 2ª Guerra Mundial. Esse é um dos capítulos ignorados nos livros da nossa história — mas que, neste 8 de maio de 2025, o Dia da Vitória que marca os 80 anos do fim do conflito — , ainda resiste graças à pesquisa do jornalista sul-mato-grossense Geraldo Ferreira, um verdadeiro aficionado pelo assunto.
À direita da imagem, Wenceslau Ribeiro, indígena de MS que chegou a 2º sargento da FEB. (Foto: Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército)
Não é exagero afirmar: o pouco que se sabe sobre a participação dos povos originários sul-mato-grossenses em um dos períodos mais dramáticos da história mundial é fruto do trabalho hercúleo da pesquisa que Geraldo iniciou há 25 anos.
Ele estima que aproximadamente 30 indígenas teriam sido arregimentados pela FEB (Força Expedicionária Brasileira), em terras pantaneiras, para lutar ao lado dos Aliados na Itália, contra os nazistas. Contudo, só há informações mais detalhadas sobre 15 combatentes indígenas, dos quais quatro não foram identificados. Dois morreram em combate.
Todos embarcaram para a Itália em 1944, às vésperas do fim do conflito, que se estendeu de 1939 a 1945.
Os sobreviventes retornaram carregando os traumas da guerra e com quase nenhuma recompensa digna. Ao longo dos anos que se seguiram, os heróis terenas sul-mato-grossenses viram suas histórias serem esquecidas, enquanto eles mesmos padeciam diante da agem do tempo.
Todos já morreram, mas seus ados como soldados de guerra seguem vivos nos arquivos que Geraldo foi compilando enquanto tentava mapear os os dos indígenas sul-mato-grossenses até o front.
Os 15 indígenas de Mato Grosso do Sul que teriam feito parte da FEB são: 1v5h4s
Aurélio Jorge, Dionísio Lulu, Leão Vicente, Irineu Mamede, Honorato Rondon, Antônio Avelino da Silva, Pedro Belizário Pereira e Natalino Cardoso — originários da Aldeia Bananal, em Aquidauana;
Venceslau Ribeiro — da Aldeia Brejão de Nioaque;
Olímpio — de Miranda;
Rafael Dias — da Aldeia Limão Verde;
Otávio — indígena Kadiwéu;
Dionísio Dulce Leão Vicente — da Aldeia Água Branca;
Outros dois indígenas Kinikinao — da Aldeia de Lalima, em Miranda, teriam sido mortos em combate.
O começo de tudo 735024
Geraldo conta que começou a pesquisa por puro faro jornalístico e encontrou uma fonte de arquivo valiosa: um livro que lista todo o efetivo de quase 26 mil combatentes convocados pela FEB para lutarem na 2ª Guerra Mundial.
Foi um trabalho de “formiguinha”. A partir dos relatos de familiares ou conhecidos dos ex-soldados, Geraldo ou a confirmar se, de fato, eles participaram da luta contra os nazistas.
Geraldo Ferreira iniciou pesquisa sobre a participação dos indígenas de MS na 2ª Guerra em 2000. (Foto: Reprodução/Facebook)
De Mato Grosso do Sul, os indígenas foram encaminhados para o Rio de Janeiro. Lá, receberam instruções de tiro, desmontagem e montagem de armas, além de outros treinamentos necessários para enfrentar o campo de batalha.
O jornalista conheceu ao menos cinco ex-combatentes indígenas e lembra que os relatos eram um misto de orgulho, trauma e superação.
Aurélio Jorge foi um dos primeiros que Geraldo ouviu, ainda no ano 2000. A entrevista foi concedida na língua terena e intermediada pela esposa do jornalista, que é da mesma etnia. O indígena serviu no 9º Batalhão de Engenharia do Exército e rumou para a Itália em 2 de julho de 1944.
“O senhor Aurélio Jorge me contou coisas que ele não havia contado sequer para a família. Ele escutava fogos e se escondia embaixo da cama, dentro do guarda-roupa, achando que estava a salvo ali, por conta de tanto trauma.”
Geraldo Ferreira.
De bom, restava na memória do pracinha Aurélio as lembranças da primeira vez que se deparou com um navio, pisou na neve e viu o mar, cita o jornalista. De mais nebuloso, ainda pairava a lembrança dos corpos de colegas que ele se viu obrigado a carregar. Aurélio Jorge morreu em 2004.
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José Quevedo. (Foto: Geraldo Ferreira/Divulgação)
O fantasma da 2ª Guerra também atormentou José Salvador Quevedo pelo resto da vida. Natural da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, na região de Antônio João, Quevedo serviu no 6º Regimento de Infantaria e, de Campo Grande, seguiu para a guerra em 23 de novembro de 1944.
No retorno à capital após o fim do conflito, Quevedo chegou a trabalhar em uma tinturaria na Avenida Calógeras, mas o vai e vem de veículos e pessoas ainda lembrava o caos dos campos de combate.
José Salvador, então, foi morar em uma fazenda até conseguir emprego na icônica Estrada de Ferro NOB (Noroeste do Brasil), que cortava Mato Grosso do Sul.
“Ele aceitou o emprego com a condição de que fosse enviado para ficar longe da estação, que não precisasse dele ficar perto de gente — e assim foi. Ele só foi pegar em uma arma cerca de 30 anos depois da guerra, lá na estação Guaicurus, na região de Miranda. Era um dia em que não tinha mais carne em casa, não tinha peixe, não tinha nada. Ele pegou a espingarda, saiu para caçar, matou um porco e levou para casa. Ele me disse que foi algo bem estranho pegar em uma arma de novo — e também foi só aquela vez.”
O sofrimento da guerra também minou a saúde mental de Otacílio Teixeira, que serviu no 6º Regimento de Infantaria da FEB. Filho de um negro e uma indígena, o soldado Terena foi atirador na Segunda Guerra.
Ele não revelou aos demais combatentes sua origem indígena e, mesmo assim, sofreu preconceito por conta do seu tom de pele. Quando retornou ao estado, também quis se manter longe da civilização, cita Geraldo.
“Eu perguntei para ele por que nunca tinha revelado que era indígena. Ele me respondeu dizendo que, naquela época, um cachorro tinha mais valor que um ‘índio’. Então, para ele, ser negro já era difícil — e, se revelasse que era indígena, seria pior ainda.”
Geraldo Ferreira.
Também chama atenção a trajetória do terena Wenceslau Ribeiro, de Nioaque, que foi um dos poucos a ascender na carreira militar durante a sua participação na guerra. (Imagem que abre a matéria).
Ele ingressou na FEB como soldado, foi promovido a cabo e 2° sargento, descobriu Geraldo. O jornalista teve o apoio do pesquisador Helton Costa, pós-doutor em História pela UFP (Universidade Federal do Paraná), na compilação de alguns dos registros que até resultou em artigo sobre os praças indígenas.
A guerra também deixou marcas permanentes em Pedro Belizário, que ficou surdo do ouvido direito por causa de uma bomba que explodiu muito perto dele. Já Leão Vicente fraturou a perna em combate e voltou mais cedo para casa.
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Capela onde Irineu foi sepultado tem símbolo da FEB. (Foto: Geraldo Ferreira/Divulgação)
Em túmulo humilde construído na aldeia Ipegue, em Aquidauana, descansa outro conhecido de Geraldo: o ex-combatente Terena Irineu Mamede, que faleceu ainda na década de 1990. O jazigo, decorado com o símbolo da cobra fumando — emblema da FEB —, lembra os tempos áureos em que o indígena trocou a luta por território em Mato Grosso do Sul para enfrentar o fascismo alemão.
“Em frente Brasil” 611i3i
Em todos os casos, os soldados indígenas tiveram a mesma rotina que os demais convocados, eles teriam saído de suas unidades militares de origem e levados aos pontos de reunião, no Rio de Janeiro, que era a Capital Federal da época.
De lá, eles embarcaram em algum dos cinco contingentes da FEB, seguiram para a Europa e desembarcaram em Nápoles e em seguida em Livorno. Dali, foram incorporados em Companhias e fizeram a Campanha da Itália.
Durou cerca de 1 ano o período em que os indígenas sul-mato-grossenses permaneceram em combate. O termo Terena “Vukápanavo”, que em português significa “em frente”, teria sido o lema usado pelos povos originários para lutar ao lado dos demais combatentes.
Geraldo Ferreira guarda com orgulho sua pesquisa sobre a participação dos indígenas de Mato Grosso do Sul na 2ª Guerra Mundial. Por falta de financiamento, ele conta que nunca pôde publicar um livro detalhando seu trabalho, mas segue sendo referência no assunto.
Tanta dedicação foi a maneira que ele encontrou para dar o devido reconhecimento ao esforço de personagens que a história não deu a devida importância.
“Não existem registros da participação dos indígenas integrantes desta força nas páginas da história brasileira nos campos de batalha da Europa, ao contrário do que foi tão bem guardado na memória pelos relatos do Visconde de Taunay na Guerra do Paraguai. Os soldados Aurélio Jorge, Honorato Rondon, Irineu Mamede, Leão Vicente, Antônio Avelino da Silva e muitos outros guerreiros indígenas nunca tiveram o destaque merecido entre os demais heróis da Segunda Guerra Mundial. Talvez, neste século, em sua luta incansável por condições mais dignas de sobrevivência e em reaver parte de suas terras, sejam lembrados como heróis que participaram de uma luta por um mundo livre.”
Trecho do Artigo Vucápanavo Brasil, de autoria de Geraldo Ferreira.
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